Partilha de amor e saberes

fevereiro 14 11:47 2019

Texto: Silen Ribeiro
Fotos: Leandro Alves e arquivo pessoal

Até bem pouco tempo, era muito comum na região Nordeste a junção de nomes (ou parte deles) para a formação de um inédito. Venceu, portanto, quem apostou que o nome Mundicarmo é resultado dessa prática. “Dizem que foi brincadeira de um tio. O meu pai era Raimundo (Mundico) e minha mãe Maria do Carmo. Nasci apressada, um mês antes do previsto. Ele mandou um telegrama parabenizando pela chegada de Mundicarmo (juntando o ‘Mundi’ de papai e o ‘Carmo’ de mamãe). Diziam que esse meu tio era muito autoritário e ninguém queria contrariá-lo. Aí, colocaram meu nome assim”, conta ela sorrindo.

Dona de um vasto currículo, Mundicarmo Maria Rocha Ferretti é professora Emérita da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), pós-graduada em Filosofia; mestra em Administração Pública e em Ciências Sociais (Antropologia); doutora em Ciências – Antropologia Social; professora titular aposentada da UEMA; professora aposentada da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); professora dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e em Políticas Públicas da UFMA; coordenadora do Grupo de Pesquisa “Religião e Cultura Popular” – GPMINA/UFMA; membro titular da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e da Comissão Maranhense de Folclore (CMF). Possui 323 produções bibliográficas e 12 prêmios. Tem experiência de ensino e de pesquisa na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia das populações afro-brasileiras. Casada por mais de 50 anos com o também antropólogo e professor, Sergio Ferretti, falecido no último mês de maio e homenageado do Prêmio Fapema deste ano, ela é a entrevistada especial desta edição.

Para melhor contextualizar a sua história, conte-nos um pouco da sua origem.

Eu nasci no sertão do Rio Grande do Norte, na cidade de Pau dos Ferros, mas meus pais foram migrando para outros estados do Nordeste. Ceará, Piauí, e por fim, Maranhão. Cheguei aqui com 11 anos mais ou menos. Considero-me maranhense. Aqui em São Luís, estudei o secundário no Colégio Santa Teresa. Aqui também fiz minha graduação e só saí na pós-graduação. Sou a primeira de 11 irmãos. Minha mãe era dona de casa e meu pai comerciante e também folclorista. Daí vem o meu interesse pelo tema.

Com menos de sete anos de idade, eu via, na porta de casa, no Piauí, folia de reis, bumba-boi. E ouvia muita música popular. Minha dissertação de mestrado foi sobre Luiz Gonzaga, que era uma música que eu ouvia nos alto-falantes dos bairros e também nos discos tocados na vitrola à corda. Sou de família muito católica. Como já falei, estudei em escola religiosa. No secundário e na faculdade fiz parte de ação católica. Militância mesmo. Minha mãe tinha dois irmãos padres e várias irmãs freiras, e faziam questão de que estudássemos em colégios religiosos. Ela teve duas irmãs que fizeram curso Normal. Meu avô achava que para custear estudo fora, só se fosse no seminário. Minha mãe interrompeu os estudos cedo porque casou. Mas ela tinha interesse que os filhos se formassem. No meu caso, havia uma predestinação do meu irmão, que era o segundo, para ser o intelectual da família.

Deveria ser advogado, a exemplo do meu bisavô que era um rábula, um advogado leigo. As mulheres estudavam, mas não tinham acesso a certas coisas. Lá em casa, por exemplo, tinha equipamentos, como gravador, filmadora. Meu pai gostava dessas coisas. Mas era o meu irmão que tinha acesso a tudo isso. Nunca vi minha mãe ligando um desses equipamentos. No Santa Teresa, às vezes, o pessoal lia as minhas redações. Mas a minha atividade intelectual considerada e reconhecida de fato, deu-se mais tarde.

A senhora é graduada em Filosofia, no entanto, o seu maior destaque se dá na Antropologia. Como ocorreu esse processo?

Eu estudei Filosofia, mas não era meu objetivo direto. Em nossa trajetória de vida, a gente vai encontrando oportunidades. Às vezes, a gente se desvia e depois volta aos pontos que a gente valoriza e quer. De fato, escolhi Filosofia por ser um curso que tinha em São Luís, onde mais se estudava Psicologia, que era realmente o meu interesse. E a ideia era fazer graduação e partir para especialização em Psicologia que, na época, existia da Faculdade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. Isso porque a profissão de psicólogo não era regulamentada e havia oportunidade de entrar profissionais de áreas diversas. Só que, quando me graduei, a profissão já havia sido regulamentada e a Santa Úrsula já não aceitava profissionais de outras áreas para a especialização. Quando me formei, comecei a dar aula de Psicologia em es colas como Ateneu e Rosa Castro. Depois foi criada a Escola de Administração Pública, que hoje é integrada à UEMA. Participei do grupo que organizou essa Escola quando fui monitora do professor Cabral Marques e trabalhei na equipe dele na organização de um seminário de reformas administrativas do estado. Então foi feito um convênio com a Fundação Getúlio Vargas para preparar os primeiros professores da Escola de Administração. Houve uma seleção. Deveriam ir dez pessoas fazer o mestrado e fui uma das selecionadas. Depois voltei e fiquei trabalhando principalmente na Escola de Administração. Pelo menos durante dez anos fui assessora de todos os diretores, coordenadora de curso, vice-diretora de ensino, além de ser professora de Psicologia e das disciplinas correlatas. Aí entra a influência de Ferretti. Eu não tinha estudado Antropologia. Não existia essa disciplina na época.

Ele se formou em História e Museologia e veio trabalhar no Movimento Educação de Base (MEB). Após um ano, ele saiu para um treinamento de cooperativismo e tirou férias. Aí aconteceu o golpe militar, o MEB foi fechado e ele não voltou. Mas a gente começou a namorar nesse período em que aqui ele esteve. Mesmo depois que ele foi estudar na Bélgica, onde passou dois anos, a gente continuou o namoro por cartas. Depois que ele voltou é que fui fazer o mestrado de Administração sobre o qual me referi, casamos e ainda ficamos um ano no Rio. Nessa época, a UFMA estava se expandindo.

Posteriormente, houve proposta interessante de trabalho para mim e para ele. Ferretti era muito dinâmico, muito expansivo, tinha muitos amigos e a nossa casa era muito frequentada por professores e pesquisadores. E lá aconteciam as reuniões. Eu participava delas e fui me interessando pela área de Antropologia. Eram organizados cursos de férias, conferências com pessoas da área que passavam por aqui. Depois de dez anos, diminuí minha carga horária na Escola de Administração e aumentei na UFMA. Surgiu, então, uma oportunidade de um curso de mestrado no Rio Grande do Norte. Nós dois concorremos e fomos selecionados. Sem Ferretti, provavelmente eu não teria enveredado por essa área. Mas a gente sempre trabalhou com coisas diferentes. Enquanto ele já trabalhava com religião afro, o meu trabalho para a seleção de mestrado foi sobre feiras e mercados. Depois fiz outro projeto e comecei a trabalhar com o tema Luiz Gonzaga. Para feira e mercados não consegui com facilidade um orientador na Antropologia, porque achavam que era assunto muito ligado à Administração. Tive, então, que me ajustar. Na época, final dos anos 70, o forró estava em alta. E comecei a me lembrar muito das músicas da minha infância. Interessei-me e comecei a fazer uma pesquisa sobre isso. De modo que ainda trabalhei com esse tema depois do mestrado um ano mais ou menos. Mas aí tive outros problemas. Entrei com projeto no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para apoio à pesquisa do baião, entretanto eles diziam que não era Antropologia. Mas eu tinha interesse em estudar também o caboclo no tambor mina. De modo que depois continuei nessa área. Eu me interessei mais por um lado que a intelectualidade brasileira valoriza menos, porque considerava impuro, misturado.

Dentro de uma série de áreas de pesquisas que a senhora desenvolveu, há um grande destaque no que se refere às religiões de matriz africana. De onde partiu esse seu interesse?

A primeira vez que fui a um terreiro, fui levada pelo meu pai, Raimundo Rocha. Algumas pessoas ligadas ao Projeto Rondon estiveram aqui e queriam conhecer coisas do Maranhão. E ele levou a turma a um terreiro que ficava para os lados do Olho d’Água. E eu e Ferretti também fomos. Eu não tinha o menor conhecimento porque naquela época a Igreja Católica, pelo menos nos seguimentos que eu me inseria, não aceitava outras religiões. Eu morava na rua do Passeio, perto da Casa das Minas. Passei por lá várias vezes e nunca soube que era a Casa das Minas. O ponto de contato com a religião foi o baião de Luiz Gonzaga. Entrei na religião por esse viés. Eu estudava o baião, já estava com a  dissertação quase pronta, quando Ferretti me disse que existia um ritual baião, na casa Fanti Ashanti, inclusive com sanfona, em vez do tambor. Achei incrível e fui conferir. Então, enquanto escrevia a dissertação, já abri um caderno para anotações de observações, de entrevistas. Defendi a dissertação. Houve grande sucesso e foram publicadas três edições pela Editora Massangana, de Pernambuco. Mas no Maranhão, na época, não havia muito interesse pelo forró e ninguém me convidava para fazer palestra sobre baião e eu sempre ia ficando com poucas oportunidades.Então, reafirmando, meu acesso às religiões afro se deu pelo baião.

Como mostra o levantamento do Ministério dos Direitos Humanos, realizado por meio do Disque 100, entre janeiro de 2015 até o primeiro semestre de 2017, as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no Brasil, mostrando que 39% das vítimas são pessoas dessas religiões. Em sua opinião, por que isso acontece e o que pode ser feito para esse enfrentamento?

Uma religião que foi trazida por um segmento da população que foi escravo, que teve ainda que lutar para sair das camadas mais populares, não é difícil de entender que tenha sido objeto de preconceitos. Ano passado, nós lançamos, por meio da Fapema, alguns livros baseados nos trabalhos de alunos bolsistas de iniciação científica, sobre jornais maranhenses do século XIX até meados do século XX. São notícias terríveis em relação a essa religião desse segmento da população. A ideia de feitiçaria, de maldade, consideradas como coisas de ignorantes. Enfim, desvalorizadas sobre diversos ângulos. Mas ao mesmo tempo, essa sociedade era contraditória. Uma dessas matérias, por exemplo, mostra que alguém apresenta uma queixa de que fizeram um trabalho na porta de um estabelecimento comercial e o delegado manda prender o autor. Porque no fundo acredita na feitiçaria. Discrimina o feiticeiro, prende o feiticeiro, mas acredita na feitiçaria e também recorre a ela nos momentos precisos. Depois, a literatura produzida pelos próprios devotos era pequena, devido ao acesso aos degraus mais altos do ensino que era muito difícil. Hoje em dia, isso mudou. Aqui mesmo em São Luís há vários pais de santo com curso superior. Lá em São Paulo, já havia pessoas na pós-graduação em Ciências Sociais que eram pais de santo e muitos filhos de santo.
Eram tantos que as pessoas diziam que era o terreiro da Universidade de São Paulo (USP). Essas coisas foram mudando e a tendência é mudar mais. Há medidas governamentais que vão ser importantes nisso. Por exemplo, a questão das cotas das universidades abriu as portas para muito negros. E o próprio movimento negro se reformulou. Para se ter uma ideia, no começo, o movimento batia na questão da África pura, contra o cristianismo, porque era a religião do colonizador; depois contra os caboclos porque não eram africanos. Mas depois o próprio movimento negro começou a valorizar essas coisas como sendo algo que entrou, que se não era de origem africana, foi adotado pelos negros e assumido e passou a valorizar como parte da cultura legítima. É muito importante também o papel
da mídia. A televisão, por exemplo, já mostra em algumas novelas, em alguns programas. Algumas vezes
de forma caricatural. Mas vai mostrando os rituais e coisas que antes não se tinha qualquer contato passam a ser vistas de casa, em uma novela, em um documentário. E essas coisas vão ajudando a mudar a mentalidade das pessoas sobre as religiões. Nesse sentido, a militância é importante. Os militantes, a organização dos pais de santo em federações para exigir, por exemplo, que a Record desse direito de resposta contra as ofensas da emissora às religiões afro-brasileiras. Isso é uma coisa de dentro, com apoio de intelectuais de fora, evidentemente. A academia também é parte importante, estuda e divulga. Além do acesso dessa população, reafirmo, a um nível mais alto do conhecimento, da intelectualidade.

Segundo dados do Censo Oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010, apenas
0,3% da população brasileira se declara como adepta de religiões de origem afro. A senhora considera que isso de fato reflete a realidade?

Há vários problemas. Por exemplo, a forma de classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele tem um questionário com determinadas categorias para você marcar. Então já fecha. Outra coisa, a gente que trabalha com a população ligada à religião afro-brasileira já sabe que muitas vezes quando sondamos as pessoas sobre qual a sua religião, elas são católicas e mineiras, por exemplo. Mas quando questionada em uma pesquisa, dizem ser da religião Católica. E por quê? Porque Mina não está nos esquemas, não é oferecida como alternativa. Quando muito, se oferece a Umbanda, religião nacional mais moderna, mais aceita pela classe média, porque entrou mais brancos, é mais urbana. Ou o Candomblé, que é uma vertente antiga, bastante mais aceita pela intelectualidade há muito tempo na Bahia, tais como Jorge Amado, Pierre Verger e outros intelectuais. Na hora que você pergunta qual a sua religião, o pessoal mesmo assumido diz que aquilo é uma obrigação. Mas não chama de religião.
Consideram religião o Catolicismo, o Protestantismo, no máximo o Candomblé ou a Umbanda. Eles não são uma coisa nem outra. Eles são Mina. Esse é um dos problemas. Isso dificulta a pessoa a assumir que a sua religião é a mineira. Com o avanço do movimento negro, as pessoas estão assumindo mais, tomando consciência de que aquilo é religião, e que a religião dela é mineira. É uma religião que não tem uma literatura básica. Não tem uma Bíblia, um Alcorão, por exemplo. Então a pessoa, como catolicismo é religião desde a origem, já diz que é católico, inclusive por não ter opção de marcar duas.  Em São Paulo, quando estava no doutorado, já havia pesquisadores trabalhando muito a questão do duplo pertencimento. Se for permitido, coloca duas. Eu, por exemplo, não aceito a interpretação clássica do sincretismo, que defende a ideia de camuflagem do que se fazia por causa do preconceito. As pessoas são católicas mesmo. Têm a fé nessa religião, valorizam. Só que pegam as duas. Para elas, não há incompatibilidade. Não têm por que ser exclusivistas. Qual o problema de saudar São Benedito e Verequete?

Faça um breve relato acerca do papel da mulher nas religiões de matriz africana.

O destaque é muito grande. A mulher tem uma presença muito mais forte. Isso acontece de certa forma na religião católica. Quando se vai a uma missa, há muito mais mulheres que homens. O espaço reservado para a mulher, no entanto, não é o mesmo. Mas isso está se reformulando. A ministra da eucaristia, por exemplo, pode dar comunhão para outras pessoas. Já está havendo uma ascensão da mulher. Mas as posições mais altas ainda são ocupadas pelos homens. No caso da religião afro, as mulheres são os grandes nomes. Seriam os bispos e os papas da igreja
Católica. Mas não quer dizer que sempre acontece assim. Na África, por exemplo, a liderança masculina ainda é forte. No Brasil, fala-se que houve homens importantes. Alguns fatores históricos e diversas circunstâncias colocaram as mulheres com mais condição de assumir a liderança, a coordenação. O certo é que os terreiros tradicionais daqui e os que a gente conheceu na Bahia eram chefiados por mulheres. Os homens têm papéis definidos, mas um papel de menor importância, e são em número menor. Na Casa das Minas só dança mulheres. Também em alguns terreiros de Umbanda daqui de São Luís são só as mulheres que recebem entidades. Há pesquisadores, por exemplo, que têm feito estudo no interior da Bahia, no Terreiro Roça do Ventura, em Cachoeira, e dizem que existem documentos do século XIX que mostram não ser uma coisa exclusiva das mulheres. Aqui, o que a gente conhece no século XIX, teriam dois ou três terreiros chefiados por homens. O restante era por mulheres. Havia terreiros dos anos 50, que eram chefiados por homens, como era o caso da Casa Fanti Ashanti, com pai Euclides, e do terreiro do Jorge de Itacy, que era conhecido também por Jorge Babalaô. Eles entraram em uma época que era admissível ser pai de santo, com muitos preconceitos. Começaram como pajé e depois passam fazer Mina porque não ficava bem homem dançando Mina. Havia discriminação interna. Mas eles se afirmam e se tornam pais de santos importantes. Mas são as mulheres que dão continuidade. A segunda e terceira posições cabiam às mulheres. Por morte deles assumem as mulheres. Mas na evolução das coisas, alguns terreiros abriram espaços para homens. Eu
ainda vi terreiro em São Luís onde tinha escrito na parede: “proibido dançar mais que quatro homens”. Podiam ter duzentos, mas dançar, até quatro. É para conter a expansão masculina. Manter as coisas nas mãos das mulheres.

Por ser mulher, a senhora sofreu preconceitos que tenham causado empecilhos em desenvolver suas pesquisas?

A Casa das Minas era o espaço de Ferretti. Ele que começou lá. Enquanto eu estava no baião, ele já estava lá. Ele tinha um laço com a Casa das Minas. Depois fez um livro muito importante. Eu não o acompanhava nessa época. Quando comecei a acompanhá-lo, eu era a esposa do professor. Depois do doutorado é que ganhei o direito de tocar a cabaça. Mas sempre digo que ela era de segunda categoria. Não consegui nem saber o nome africano da cabaça. Ferretti não sentia nada. Ele era um consultor, uma pessoa amiga e muito solicitado. Mas ele era o professor.
Agora eu, comecei a coisa por lá e tocando cabaças, senti algumas coisas. O tocador chefe às vezes ria e dizia: “já está irradiada”. Se fosse em outras casas que estivessem interessadas em trazer adeptos, talvez eu fosse uma mãe de santo. Mas na Casa das Minas, não. A estratégia é primeiro negar, afastar, para então provar se a pessoa de
fato tem alguma coisa. Porque se for do santo, eles dizem “pode correr para longe, mas vai ter um momento que ele vai te trazer para o local”. Na comunidade acadêmica também tem o machismo. Algumas vezes fiquei chateada. O primeiro livro que publiquei continha dois trabalhos. Um sobre o Mercado Central e outro sobre religiões afro.
Foi premiado em um concurso do Sioge. Publiquei o livro e mandei para alguns amigos. E algumas pessoas ligavam e diziam “gostei do livro de vocês”. Ou seja, dando logo a metade para Ferretti, considerando que eu era pesquisadora de feiras e mercados, e ele, de religião afro. Houve até um pessoal traçando estratégia para resolver esse problema. O nome Mundicarmo não era uma palavra conhecida e as pessoas não sabiam se era homem ou se mulher. E praticamente ninguém sabia que o nome de Ferretti era Sergio. Alguns pensavam que Mundicarmo Ferretti era ele.
Então algumas pessoas resolveram traçar uma estratégia. Diziam, “vamos citar Rocha Ferretti ao invés de Mundicarmo Ferretti”. Mas não deu certo. Uma hora eu era Rocha, outra, Ferretti. A gente pensou, então, colocar na orelha do livro, o meu retrato para deixar marcado que a obra era minha e não dele. Andei fazendo isso depois relaxei porque já estava mais conhecida, meu nome já havia sido registrado. O machismo existe, é forte. O caso é que além de ser mais velho e começar a trabalhar a religião afro bem antes, também tem a questão de temperamento. Ele era uma pessoa mais aberta, mais expansiva. Mas quando comecei a trabalhar na UEMA, era o esposo de Mundicarmo, pelas funções que eu ocupava, como assessora, vice-diretora de ensino, etc.

Atualmente, a senhora é a coordenadora do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular – GPMINA. Quando ele surgiu, quem participa e pode participar dele, o que vem desenvolvendo e quais os seus principais resultados até o momento?

Antes, Ferretti era coordenador e eu subcoordenadora. Esse grupo é filho da Fapema. Chegamos do doutorado em 1991 e a Fapema estava sendo criada e entra com programa de bolsas de iniciação científica. Ele e eu organizamos um grupo, com dez bolsistas, alunos do curso de Ciências Sociais, que era novo também, e de outros. Sergio ficava com alunos de Ciências Sociais mesmo. Os meus orientandos eram de Administração, de Direito, de Comunicação. O grupo era de religião afro. Independente de área que fosse, iria trabalhar conosco nessa linha. Tinha um programa de leitura de estudos clássicos da religião afro e também cada aluno tinha que escolher um terreiro e dentro dele algo que o interessasse mais. A gente levava o grupo para ver de perto o que era Pajelança, Candomblé, Umbanda, Mina. Bem sistemático no começo. Depois foi mudando muito. Primeiro porque algumas áreas não tinham grupos de pesquisas e tinham interesse. Essas pessoas foram entrando e modificando o grupo. Teve gente que quase não foi a terreiro, mas estudou a história por meio de jornais e participava do grupo que a gente reunia a cada 15 dias. Mas não foram pesquisadores de campo como os do começo. Mais tarde, surgiram pessoas que queriam estudar outras religiões. Por exemplo, uma menina que queria o estudo comparativo entre o transe pentecostal e o da religião afro. Um pastor que queria estudar o Santo Daime. E a gente acolhia todos. Terminou que temos hoje pessoas de diversas religiões. Mas sempre puxando a cultura brasileira e a religião afro. Tem gente que vem de outros lugares, como Piauí, de Cururupu, e algumas dessas pessoas não são acadêmicas, são curiosas acerca do assunto. Então, o grupo continua e desde 1992 vem passando por alterações de acordo com as necessidades. O reconhecimento ao trabalho das mulheres cientistas ainda deixa muito a desejar. Na contramão disso, a sua obra é amplamente reconhecida e divulgada. Um exemplo disso são os doze prêmios recebidos pela senhora, sendo o último em 2016, o Honra ao Mérito Científico-Tecnológico, do Prêmio FAPEMA Maria Aragão.

O que a senhora destacaria como seu principal legado?

No grupo de pesquisa, acho que a minha principal contribuição está muito na linha da abertura contra a discriminação e o fechamento do foco do interesse e também na parte da metodologia. Eu estou sempre querendo saber da turma “o que você está fazendo?”,“Como vai fazer essa pesquisa?”, “O que você quer?”, “Como está caracterizando seus dados?”. Coisas que acho que são muito importantes na ciência. E tenho isso antes da Antropologia. Ela me deu abertura para abrir olhos e ouvidos para tudo. Mas venho da Psicologia que estava mais na linha tradicional da cientificidade, da diferença entre o olhar do cientista e o olhar do leigo. Ver se aquilo é aquilo mesmo. Não generalizar as coisas demasiadamente, sem base. Agora, a minha produção científica principal é a do caboclo. Mostrar a complexidade da coisa. Não é somente o índio ancestral brasileiro e pronto. Tem que ir muito mais longe. Depois, valorizar também o que a população valoriza e levar as pessoas a assumirem e quebrarem
o preconceito, a hierarquização demasiada das coisas. Quando comecei a fazer entrevista sobre o caboclo, o pai Euclides dizia: “Pena que você surgiu numa época que Mãe Anastácia já morreu há muito tempo. Eu nunca imaginei que alguém iria se interessar por esse assunto”. E eu tinha todo um acolhimento das casas, das pessoas que recebem o caboclo. Mesmo quando elas diziam que o caboclo não era muito importante, eles valorizavam meu trabalho, diziam que era importante. Você descobre uma coisa que era relevante para eles, embora eles não estivessem verbalizando. Na hora que você faz, então eles vêm até você e batem palmas. Então acredito ser importante essa contribuição de levar esse conhecimento, contribuir com essa valorização.