“Equidade de gênero na ciência é uma grande preocupação”, diz diretora da NSF
Aos 71 anos, a astrofísica France Córdova dirige a principal agência de fomento à pesquisa dos Estados Unidos e uma das mais importantes do mundo, a National Science Foundation (NSF), cujo orçamento anual ultrapassa os US$ 8 bilhões.
E este não é o único posto de liderança que ocupou em sua trajetória. Córdova foi a primeira mulher e a pessoa mais jovem a se tornar cientista-chefe da agência espacial Nasa e também a primeira reitora da Purdue University, no estado de Indiana.
A incursão no território até então dominado por homens não foi livre de obstáculos. Ainda criança, foi desencorajada pela escola e pela família a seguir carreira nas áreas conhecidas como STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics). Durante o ensino médio, precisou pedir autorização à direção do colégio que frequentava na Califórnia para assistir às aulas de Física, exclusivas para meninos.
Tornou-se bacharel em Inglês pela Stanford University em 1969, mesmo ano em que o homem chegou à Lua. O feito a motivou a seguir sua vocação e decidiu tornar-se astrofísica. Dez anos depois, concluiu o doutorado em Física pelo California Institute of Technology (Caltech) – foi uma de duas mulheres na classe de 18.
Trabalhou no Grupo de Astronomia Espacial e Astrofísica no Laboratório Nacional de Los Alamos, de 1979 a 1989, e chefiou o Departamento de Astronomia e Astrofísica na Pennsylvania State University, de 1989 a 1993. De 1993 a 1996, atuou como a principal interface entre a administração da Nasa e a comunidade científica.
Tornou-se chanceler da University of California em Riverside em 2002 e reitora da Purdue University em 2007. Foi nomeada para o Conselho de Regentes da Smithsonian Institution em 2009, do qual tornou-se presidente em 2012.
Em 2014, foi nomeada pelo presidente Barack Obama para comandar a NSF. Sob sua direção, a agência financiou o projeto Laser Interferometer Gravitational-Wave Observatory (LIGO), que detectou ondas gravitacionais pela primeira vez em 2015 – façanha premiada com o Nobel de Física em 2017.
Córdova esteve no Brasil entre os dias 1º e 3 de maio para participar da 8ª Reunião Anual do Global Research Council (GRC), que reuniu dirigentes de agências de fomento de 50 países nos cinco continentes. O encontro foi organizado em São Paulo pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Consejo Nacional de Investigaciones Científicas e Técnicas (Conicet), da Argentina, e pela German Research Foundation (DFG), da Alemanha.
Na ocasião, concedeu uma entrevista à Agência FAPESP, na qual falou sobre os projetos da NSF para estimular a participação feminina na ciência. Disse também que a agência está discutindo o Plan S e outras iniciativas que visam promover o acesso aberto às publicações científicas. “Temos um período de embargo de um ano até que as publicações fiquem disponíveis para todos. Esta é a posição oficial da NSF no momento, mas não significa que isso não pode mudar.”
Confira a seguir os principais trechos da conversa.
Agência FAPESP – A NSF usa dois critérios para o financiamento de projetos: “mérito intelectual”, que é o potencial para avançar o conhecimento, e “impactos mais amplos”, o potencial para beneficiar a sociedade. Mas, no caso da pesquisa básica, o impacto social e econômico nem sempre é possível de prever com antecedência, não?
France Córdova – Não é preciso adivinhar o impacto que a pesquisa terá em 10 ou 100 anos, até porque no caso da pesquisa movida por curiosidade [curiosity driven research] é difícil saber qual será o verdadeiro resultado. Mas é preciso demonstrar por que o projeto é importante para as pessoas. Cerca de 50% das propostas que recebemos mencionam impactos como aumentar a representatividade das mulheres ou de pessoas com baixo nível socioeconômico. Ou apresentam alguma estratégia para o treinamento da próxima geração. Todas as propostas devem incluir um plano indicando como os dados serão preservados e geridos e também um plano de impacto, que deve envolver escolas e buscar o alcance público.
Agência FAPESP – A senhora foi cientista-chefe da Nasa, foi a primeira mulher a dirigir a Purdue University e hoje dirige a agência de fomento com o maior orçamento do mundo. Isso significa que podemos considerar a equidade de gênero na ciência uma questão resolvida nos Estados Unidos? A NSF apoia programas para estimular a participação feminina na ciência?
Córdova – Equidade de gênero é uma grande preocupação nossa e temos várias ações em andamento. Há muitas áreas, incluindo a minha, Física, em que a representação feminina ainda é muito baixa. E também Engenharia e Matemática. O problema é menor nas Ciências Biológicas e Sociais. O panorama está mudando de forma constante e lenta. Temos um programa chamado Advance, que busca abordagens sistêmicas para aumentar a participação e o avanço das mulheres em carreiras STEM. A ideia é encorajar as mulheres a buscar postos de liderança nas universidades. Fui pesquisadora principal desse programa quando dirigia a Purdue University. Quando vim para a NSF teve início o programa Includes [acrônimo para “inclusão de comunidades de aprendizes de descobridores sub-representados em engenharia e ciência em toda a nação”], que envolve mais de 70 programas-piloto por todo o país com diferentes estratégias para ampliar a representação da mulher e de outras minorias. Abrange desde programas de computação para crianças pequenas até aumentar o número de faculdades e disciplinas em áreas estratégicas. Algumas das estratégias são lideradas por grupos comunitários, outras por universidades, fundações e sociedades científicas. Criamos uma rede para que esses projetos se comuniquem. Recentemente, concedemos um financiamento para que os participantes se reunissem para trocar experiências e aprender boas práticas uns com os outros. Nossa expectativa é que isso possibilite algo importante: o escalonamento dessas iniciativas, para que não morram quando o projeto acabar. Queremos descobrir como fazer projetos que se tornem de fato exemplos de boas práticas que outros possam facilmente copiar, de modo que floresçam em muitos outros lugares.
Agência FAPESP – Quais desafios a senhora teve de enfrentar para alcançar posições de liderança?
Córdova – Tenho a opinião de que todos temos desafios, não importa quem você seja ou qual trabalho está fazendo. Um motorista de caminhão enfrenta muitos desafios simplesmente para ir de uma parte a outra do país. Sempre há obstáculos. Sim, mulheres na área de ciência e tecnologia enfrentam tipos particulares de desafios. Quando você é um motorista, aprende com colegas de profissão em quais lugares não se deve parar, qual estrada pegar, qual é a melhor tecnologia para fugir do trânsito. Você aprende à medida que experimenta a estrada e encontra pessoas solícitas e capazes de dar boas orientações. E você aprende quais são os obstáculos e como outras pessoas superaram esses problemas. E então você tenta coisas novas: ou contorna o obstáculo ou tenta atravessá-lo. Mas, claro, tenho tido muitos desafios pelo caminho e algumas raras vezes encontrei pessoas apegadas à posição de poder. Mas sempre há quem possa te apoiar e é preciso aceitar essa ajuda.
Agência FAPESP – Qual é sua avaliação sobre a reunião do GRC e como as discussões realizadas durante o evento poderão ajudar as agências a desenvolver melhor seu trabalho?
Córdova – Eu já aprendi muito com o GRC. Esta é a sexta reunião de que participo e sempre faço mais amigos e aprendo muito. Em cada reunião escolhemos tópicos diferentes para discutir. O que o GRC faz melhor é reunir financiadores de pesquisa para conversar sobre os desafios comuns e quais soluções funcionaram bem. É muito interessante poder levar esse conhecimento para casa e discutir como aplicá-lo. Perguntei aos integrantes do governing board [conselhor diretor] como suas agências têm se beneficiado e eles disseram que as discussões do GRC permitem alavancar as ações que desenvolvem em seus países. Quando os participantes se reúnem e acordam sobre determinados princípios, como fizeram novamente este ano em relação à avaliação de impacto da pesquisa, realmente faz a diferença. É uma motivação para as agências seguirem nessa direção. O progresso da ciência depende de financiamento e as agências de fomento precisam ser capazes de demonstrar os benefícios da pesquisa para as pessoas que repassam os recursos.
Agência FAPESP – Um dos temas discutidos nesta reunião foi a questão do acesso aberto às publicações científicas. A senhora tem uma posição sobre o Plan S e outras iniciativas do tipo?
Córdova – Estamos seguindo a política estabelecida em 2016, sob a administração anterior. Temos um período de embargo de um ano até que as publicações fiquem com acesso aberto e disponível para todos. Esta é a posição oficial da NSF no momento, mas não significa que isso não possa mudar. O acesso aberto é uma questão importante e estamos discutindo.
Agência FAPESP – Na sua avaliação, este é um bom momento para fazer ciência, considerando que há pessoas em posição de poder que negam as mudanças climáticas e que movimentos anticientíficos, como o terraplanismo, ganham destaque?
Córdova – Definitivamente sim. Quanto mais elementos anticientíficos surgem, mais temos de acelerar a ciência. Não somos uma agência regulatória, não fazemos regras sobre o que fazer com a ciência e também não fazemos políticas públicas. A NSF é uma agência de fomento à pesquisa e a melhor forma de desfazer mitos e entender a verdadeira natureza das coisas é financiando pesquisas sobre o assunto. É com boa pesquisa que aprendemos como o mundo funciona.
Agência FAPESP – A NSF pode sofrer um corte de 12% em seu orçamento se o congresso dos Estados Unidos aprovar a proposta apresentada pelo presidente Donald Trump. Qual é sua expectativa em relação a isso e o que acontecerá se o corte for aprovado?
Córdova – Por enquanto, vamos esperar o congresso decidir. Estamos gratos pelo dinheiro que recebemos e sempre dizemos ao congresso que faremos o melhor com o que nos for dado. Mas, se aprovado o corte no orçamento, é claro haverá corte na atividade. Sempre buscamos ser mais eficientes e efetivos. Estamos fazendo mais parcerias, com empresas como Amazon e Boeing, por exemplo, o que expande nossa base de recursos. O governo e a indústria podem trabalhar juntos e as parcerias público-privadas podem ser profundas. Não visar apenas ao lucro, mas também fazer avançar certas áreas de pesquisa importantes para o país. Mas isso não substitui o financiamento público, é apenas parte de nosso portfólio. As empresas buscam retorno no curto prazo, precisam dar satisfação e rentabilidade aos acionistas. Em nosso caso, muitos de nossos acionistas nem sequer nasceram. São nossos netos e bisnetos que vão se beneficiar da pesquisa que estamos conduzindo hoje. Boa parte de nosso portfólio é composta por pesquisa movida por curiosidade e nem temos ideia de quais descobertas vão surgir a partir delas ou quanto tempo levaremos para nos beneficiar com os resultados.
Fonte: Agência FAPESP