O papel da imprensa na manutenção do tráfico escravista

Por Ivanildo Santos 13 de janeiro de 2017

Em 7 de novembro de 1831, no primeiro ano do período regencial, a Assembleia Geral decretou e a Regência sancionou uma lei proibindo o tráfico de escravos africanos para o Brasil. A lei, bastante explícita em seu texto, declarava livres todos os escravos vindos de fora do Império e impunha penas bastante duras àqueles que os haviam importado. A interpretação corrente na historiografia é a de que essa lei, precedida por um tratado com a Inglaterra que impunha prazo final para o tráfico, foi feita “para inglês ver”, isto é, para acalmar a pressão externa e deixar internamente tudo na mesma.

Tal ponto de vista foi contestado pelo livro Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850), de Alain El Youssef, publicado com o apoio da FAPESP.

“Antes de a lei entrar em vigor, houve uma grande intensificação da importação de escravos, porque os senhores sabiam que a determinação da Regência em abolir o tráfico era real. E, quando a lei foi aplicada, o tráfico realmente entrou em curva descendente e quase terminou. Ele foi sendo retomado aos poucos, a partir de 1834 e 1835. O que eu procurei mostrar foi que a imprensa teve um papel fundamental nessa retomada. E não só na retomada, como também na manutenção desse tráfico ilegal por cerca de 15 anos, até 1850”, disse Youssef à Agência FAPESP.

Seu livro resultou de pesquisa também apoiada pela FAPESP, na qual ele consultou todos os jornais publicados no Rio de Janeiro entre 1822, data da Independência, e 1850, data final do tráfico negreiro transatlântico, para verificar qual o papel exercido pela imprensa, tanto na crítica quanto na defesa da importação de africanos. “Constatei uma estreita relação entre os artigos publicados na imprensa e os debates realizados no parlamento imperial. Ao mesmo tempo em que defendiam o tráfico no parlamento, os conservadores utilizavam os jornais para justificar o contrabando de escravos e combater aqueles que o criticavam”, afirmou.

“Percebi também uma grande sintonia entre a defesa do tráfico veiculada pela imprensa e o desenvolvimento da economia cafeicultora – uma sintonia principalmente com os cafeicultores do Vale do Paraíba, cuja atividade estava em plena expansão desde o final da década de 1820. Para tocar essa expansão, eles precisavam incorporar cada vez mais mão de obra às suas fazendas. Os conservadores se uniram a esses senhores, e, juntos, conseguiram transformar a lei que aboliu o tráfico em letra morta durante 15 anos, desde 1835, quando esse grupo se compôs e surgiu com força política, até 1850, data em que o tráfico terminou de fato”, informou o pesquisador.

Segundo a lei de 1831, o africano que aportava em território brasileiro era considerado livre, não podendo, portanto, ser escravizado. O que Youssef evidenciou em seu estudo foi como os conservadores, por meio da imprensa, justificaram para o eleitorado a manutenção da propriedade ilegal desses africanos, escravizados a despeito da lei. “A intersecção de minha pesquisa, focada na imprensa, com a de outro historiador, Tâmis Peixoto Parron, que estudou o debate sobre o tráfico no parlamento imperial, mostra como esse grupo pró-tráfico, que atuava no parlamento, atuava na imprensa também, fazendo com que os discursos parlamentares chegassem ao restante da sociedade de forma mais rápida, ampla e eficiente”, acrescentou.

No campo conservador, o campeão da defesa do tráfico foi o deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795 – 1850), representante dos interesses dos grandes fazendeiros e um dos personagens mais influentes do período imperial. Destacou-se também na defesa do tráfico a chamada “Trindade Saquarema”, que constituía o núcleo do Partido Conservador, fundado por volta de 1835 sob a denominação de Regresso. Compunham a tríade Honório Hermeto Carneiro Leão (Marquês de Paraná), Paulino Soares de Souza (Visconde de Uruguai) e Joaquim José Rodrigues Torres (Visconde de Itaboraí). “Na década de 1830, esses conservadores aglutinaram-se em torno do jornal O Sete d’Abril, que mantinha vínculo muito estreito com Bernardo Pereira de Vasconcelos. Na década de 1840, organizaram-se em torno do jornal O Brasil, dirigido por Justiniano José da Rocha, um dos mais destacados redatores do período”, detalhou Youssef.

Exemplo do combate ideológico travado pelos conservadores na imprensa foi a “notícia”, veiculada por O Sete d’Abril, acusando os adversários do tráfico de receberem dinheiro do exterior: “Saibam estes abalizados Pais da Pátria”, escreveu o redator com ironia, “que Governos estrangeiros, profundamente convencidos de que os produtos de suas colônias não podem concorrer nos mercados com os brasileiros, e que não há outro meio senão encarecer a estes pelo alto preço de braços livres em vastos, férteis e não povoados Estados, têm resolvido remunerar os que promoverem a extinção da escravatura no Brasil com a quantia de 50:000$000 de réis (…)” [O Sete d’Abril, 03/11/1835, trecho citado no livro].

Meses mais tarde, assumindo um tom épico, o jornal clamava abertamente pela revogação da lei que proibiu o tráfico: “Fez-se uma lei 10 vezes mais dura, mais fatal mesmo que o famoso Tratado [com a Inglaterra]; lei que passou na efervescência das paixões, no delírio da Revolução, na exaltação dos Partidos, na deslocação de todas as coisas e no devaneio de todas as ideias; lei que pode produzir um incêndio em todo o Brasil; lei que anima a delação, que dá ao roubo a cor da virtude, ao crime o gesto da legalidade; falamos da lei de 7 de novembro de 1831, origem de muitos males presentes e futuros, e a cujo respeito já diversas Representações subiram à Assembleia Geral Legislativa e à Assembleia Provincial do Rio de Janeiro” [O Sete de Abril, 27/07/1836, trecho citado no livro]

As forças contrárias ao tráfico tiveram grande protagonismo no início da década de 1830, quando a importação de escravos realmente caiu bastante. Esse grupo estava ligado ao Partido Moderado, surgido no fim do Primeiro Reinado, tendo à frente o padre Diogo Antônio Feijó (1784 – 1843), que foi regente do Império, e o poeta, jornalista, livreiro e político Evaristo da Veiga (1799 – 1837), fundador e editor de A Aurora Fluminense, um dos principais jornais da década de 1830 no Brasil. “Parcela significativa dos moderados se inspirava fortemente nos abolicionistas britânicos. Naquele momento, a abolição da escravidão não fazia parte de seu horizonte de expectativas, mas seus protagonistas defenderam com unhas e dentes o fim do tráfico e o cumprimento do tratado internacional e da lei nacional a esse respeito”, destacou o pesquisador.

Influência inglesa

Entre 1849 e 1850, a frota da Royal Navy, a marinha real britânica, aportou no Rio de Janeiro, pressionando os políticos brasileiros a acabarem de vez com o tráfico negreiro. Existe um grande debate sobre as verdadeiras motivações do firme posicionamento da Inglaterra contra o tráfico. “A explicação tradicional, de que a Inglaterra queria gerar um mercado para os seus produtos, e de que os escravos transformados em trabalhadores livres participariam da composição da massa de consumidores, parece insuficiente”, ponderou Youssef.

Para o pesquisador, seria necessário repensar as motivações britânicas a partir de outros componentes, como, por exemplo, a forte influência das sociedades antiescravistas sobre a opinião pública britânica. A primeira delas, The Anti-Slavery Society (Society for the Mitigation and Gradual Abolition of Slavery Throughout the British Dominions), fundada em 1823 por William Wilberforce, Thomas Clarkson e outros, combateu pela abolição da escravidão no âmbito dos domínios ingleses. E a British and Foreign Anti-Slavery Society, que resultou da reformulação da primeira, em 1839, ampliou o foco para a abolição em escala mundial. Eram grupos humanitários, com forte motivação religiosa, como bem o mostram alguns documentos da época.

“Em 1846, a Inglaterra decretou que todos os grãos e produtos similares adquiridos no mercado mundial entrariam no território britânico sem pagamento de imposto. Essa lei, de cunho liberal, acabou incentivando algumas produções escravistas em outros cantos do mundo. Os casos clássicos foram o açúcar, produzido com trabalho escravo em Cuba, e o café, produzido com trabalho escravo no Brasil. Diante disso, determinados grupos antiescravistas passaram a exigir que o país tomasse alguma iniciativa no campo militar, porque, pela via diplomática, estava claro que o tráfico não terminaria. Como o escravismo cubano estava protegido pelos Estados Unidos, já então uma nação poderosa, e com a qual a Inglaterra não queria conflito, a pressão britânica voltou-se para o Brasil, que não estava plenamente integrado à esfera de influência norte-americana, não dispunha de um sistema militar expressivo e ainda orbitava fortemente na zona de influência inglesa”, explicou o pesquisador.

Que o tráfico só tenha de fato terminado a partir da pressão militar britânica, quase duas décadas depois de sua abolição formal, é uma prova da força dos conservadores na política interna brasileira. “O que os saquaremas fizeram, e isso tem uma conexão direta com sua atuação na imprensa, foi silenciar todas as opiniões contrárias ao tráfico nos espaços públicos do Império. Entre 1837 e 1849, eles criaram uma espécie de consenso e as vozes que tentaram se levantar contra ele foram rapidamente abafadas. Defender projetos conservadores é um dado de longa duração na história da imprensa brasileira. Os principais jornais do país apenas tiveram tendência mais progressista em momentos históricos específicos, como na década de 1880, quando o discurso abolicionista predominou na imprensa brasileira”, concluiu Youssef.