Pelos Caminhos de Ferretti

Por Leidyane Ramos 2 de abril de 2019

Texto: Silen Ribeiro

Fotos: Leon Algamis e arquivo pessoal

É quase impossível se pensar em estudos de crenças, costumes e festas populares do Brasil, em especial no que se refere às religiões afro-brasileiras, sem vir à mente o trabalho do antropólogo e professor Sergio Figueiredo Ferretti. A sua vasta contribuição ultrapassou as fronteiras do Maranhão e correu o mundo. Aos 80 anos, o professor Ferretti faleceu em maio deste ano, deixando uma obra que se consolidou ao longo de mais de cinco décadas como referência para a pesquisa em diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais. O legado de Ferretti justifica sua seleção como homenageado e nome do Prêmio FAPEMA 2018.

 

UM BREVE PASSEIO PELA SUA TRAJETÓRIA PESSOAL

Infância

Nascido no bairro de Bangu, no Rio de Janeiro, Sergio Ferretti, ou simplesmente Ferretti (assim conhecido desde criança, para diferenciar de outros ‘sergios’ que havia em sua turma da escola), mostrava o seu lado mais expansivo somente entre seus familiares. Talvez pelo fato de não ser dada a ele permissão de extrapolar os “muros de casa” para as brincadeiras com a molecada da vizinhança – tão corriqueiras na época-, isso o deixasse meio retraído diante do público extrafamiliar. Comum mesmo era encontrá-lo sozinho, brincando no grande quintal de sua casa, onde havia várias plantas. Algumas semeadas por ele. Para agravar esse ‘isolamento infantil’, por vários anos foi filho único. Não à toa, por muitas vezes, enquanto as crianças pediam brinquedos, roupas, ele rogava a Papai Noel que lhe trouxesse uma irmã. Sueli chegou quando ele tinha mais ou menos sete anos. Apesar de querer muito, a sua chegada lhe provocou ciúme. Também pudera: até esse período, ele era considerado o ‘neném da casa’.

Mudança de bairro e gosto pela leitura

Por insistência de Dona Zenir, sua mãe (que era a voz forte da família, superando a do pai, seu Sérvulo), ainda na infância, mudaram para o centro da cidade, onde foi matriculado em uma escola criada de acordo com um plano especial de educação que fora organizado por Anísio Teixeira, apontado como o principal idealizador das grandes modificações que marcaram a educação brasileira no século XX. Para o deleite de um menino, que desde cedo mostrou interesse pela leitura, um dos marcos da escola era a sua excelente biblioteca. Aliás, o gosto pela leitura vinha de família, embora costumasse pontuar que isso era praticamente restrito à literatura espírita, doutrina seguida por alguns parentes, incluindo a mãe. Mais tarde, já no colégio Pedro II, era comum encontrá-lo na biblioteca, enquanto os colegas jogavam futebol na hora do recreio. Foi lá que conheceu a obra de Júlio Verne, um dos seus escritores preferidos. Além disso, por morar em um apartamento pequeno, o que dificultava as condições para o estudo, era nas bibliotecas que encontrava a solução para esse problema.

Mundicarmo Ferretti, professora e pesquisadora como ele, e sua companheira por mais de 50 anos, confirma o seu gosto pela leitura. “Ele lia o tempo todo. Eu dizia que ele só não lia guardanapo e papel higiênico. Lia a parte acadêmica, romances, jornais, o que estava na moda. E de tão absorvido pela leitura, desconhecia o que estava acontecendo em seu entorno. Por exemplo: se ia cortar os cabelos, não se preocupava em acompanhar. Só no final do corte, quando já não adiantava mais nada se saísse algo errado, é que via como havia ficado”. E vai mais além: “Para se ter uma ideia, ainda criança, em uma das vezes que foi levar a avó para Minas, resolveu carregar consigo “Os Sertões’, de Euclides da Cunha, e ficou muito frustrado porque não conseguiu ler”, complementa. Talvez esse
amor pela leitura o tenha ajudado a desenvolver também a capacidade da escrita. “Escrevia com uma facilidade muito grande, mesmo doente. E não gostava que mexessem em seu texto. Muito raramente me mostrava, porque quando isso acontecia, eu dava pitaco, queria modificar. E quando a intromissão era muito grande, ele dizia: ‘se você não quer, tem quem queira’”, conta Mundicarmo, sem esconder o riso.

Política estudantil

Foi no Pedro II que teve início o seu envolvimento no movimento estudantil. E, graças a essa participação, conseguiu também conhecer quase todo o estado do Rio de Janeiro, o que foi muito importante para sua formação. Isso porque, como integrante do Grêmio, conseguiu articular ônibus de graça, por meio do Ministério da Educação, para excursões que aconteciam aos domingos e onde, além dos alunos, sempre estava presente um professor ou um bedel. Já na universidade, o seu envolvimento na política estudantil ganha contornos maiores. Envolve-se com o Diretório Acadêmico, bem como na Ação Católica, representada, então, pela Juventude Universitária Católica – JUC.

Assim, em sua agenda, praticamente quase não sobrava tempo: manhã na Faculdade de História, à tarde, na de Museologia, e à noite, quando não estava dando aulas, encontrava-se em reuniões da JUC ou reunido com colegas em animados bate-papos regados a chope.

Amizade

Ferretti era uma pessoa de muitos amigos. Era comum encontrar em sua casa pesquisadores, professores, cujas relações extrapolavam o campo profissional e abrangiam o pessoal. Aliás, teve amigos que o acompanharam praticamente a vida toda. “Ele era uma pessoa de grupo. Logo que chegou ao Maranhão, reclamava que as pessoas não o convidavam para almoçar, por exemplo, e que no Rio ele estava acostumado a isso”, recorda Mundicarmo.

A professora da UFMA, Elizabeth Beserra, mais conhecida por Beta, e que conviveu com Ferretti por 40 anos, foi uma de suas grandes amigas. “Quando entrei na UFMA, ele já estava lá. Mais ou menos durante uns 20 anos, o nosso convívio foi fundamentalmente profissional. De uns vinte anos para cá, estreitamos a nossa relação e passamos a ser amigos. E isso teve início quando, juntos, começamos a fazer diariamente atividade física. Iniciamos com natação e depois passamos para hidroginástica. Eu sempre me divertia porque comentava com os alunos: ‘Hoje conversei com Ferretti na piscina’. Quem ouvia, pensava que a gente vivia flauteando, a bordo de uma piscina, sem ter nada para fazer. Era um momento privilegiado de encontro da gente. Colocávamos todas nossas histórias em dia. trocávamos ideias, combinávamos tarefas de trabalho, festas, etc. Até hoje, às vezes me pego dizendo: ‘Vou perguntar ao Ferretti como agente faz isso’. Aí eu levo um susto muito grande em constatar que não posso perguntar a ele. Órfã. É assim que eu me sinto”, diz.

Vinda para o Maranhão

Nos anos 60, o Rio de Janeiro era uma cidade de grande efervescência cultural. Mas havia por parte de Ferretti um desejo de ir além de suas fronteiras, de conhecer de forma melhor a realidade brasileira, desejos típicos de quem olha muito além “do seu mundinho”. E não teve dúvidas quando, recém-formado, recebeu a proposta de trabalhar no Movimento de Educação de Base – MEB. Assim, em 1963, chega ao Maranhão, onde permanece por um ano. Costumava afirmar ter sido um período muito rico, mas ao mesmo tempo assustador, por se tratar de uma realidade bem diversa daquela a que estava habituado. Nessa época, aconteceu o despertar de seu interesse pela cultura local. Além disso, construiu nesse período laços, o que o fez voltar, mesmo tendo passado dois anos na Bélgica estudando. Nessa estruturação de vínculos, inclui-se e destaca-se o seu relacionamento com Mundicarmo.

Namoro, noivado e casamento

Mundicarmo Ferretti ainda era caloura da faculdade de Filosofia quando os dois se conheceram no teatro, em um período da Semana Santa, apresentado por um amigo em comum, Aldy Melo. Como Ferretti estava chegando ao Maranhão, marcaram algumas idas à Praia Grande e a outras ruas de São Luís porque ele mostrou interesse na arquitetura colonial portuguesa. “Eu estava interessada na Encíclica de João XXIII. Se bem que, na verdade, eu estava mesmo era entusiasmada com um rapaz evangélico e João XXIII falava muito sobre ecumenismo. Então eu e Ferretti marcamos para lermos juntos a Encíclica. Terminou me convidando para ver o pôr do sol na Praça Gonçalves Dias. Parecia muito interessado. Depois recuava e me deixava confusa. E mais: quando o rapaz era o assunto entre nós, ele dizia para eu insistir, que talvez ele fosse tímido. Um dia minha turma ia para uma excursão em Caxias e depois ele já ia para o Uruguai para fazer um curso. E resolvi viajar, porque aquilo não ia para frente. Mas antes houve uma festinha dançante da faculdade, no Lítero da João Lisboa, e então fomos à festa e resolvemos a parada”, diz Mundicarmo.

Após o curso no Uruguai, Ferretti entraria de férias e posteriormente voltaria para São Luís.

Não voltou, porque veio a ditadura militar e o MEB foi desativado. “Nos dois anos em que esteve na Bélgica, nos correspondemos por cartas. Quando fizemos cinquenta anos de casados, ele sugeriu que as publicássemos, mas, por motivos diversos, essa ideia foi abandonada”, diz Mundicarmo.

Por insistência de Ferretti, houve o noivado na igreja. Possivelmente pelo seu aspecto arquitetônico, a escolhida foi a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Rua do Egito. “Ele havia chegado da Europa. Tinha umas economias, passou na rua Grande, comprou as alianças e falou com meu pai à moda antiga. A missa não teve nada de especial e contou com a presença de meia dúzia de amigos e colegas. Já o casamento ocorreu na igreja da Sé com mais pessoas presentes”.

Sobre a relação dos dois, Mundicarmo é enfática. “Apesar de estilos diferentes, fomos companheiros no mestrado, doutorado, na vida, e a cooperação foi o tempo todo. Na alegria e na tristeza. Claro que havia conflitos, mas foi uma relação que deu certo”. Mundicarmo não é muito ligada a este tipo de detalhe, mas Ferretti sempre falava da união de seus avós paternos que também beirou a bodas de ouro. Contava sempre que três meses depois da morte do avô, a avó faleceu. “Ele achava isso lindo. E eu não. Dizia a ele que viver junto, ótimo. Morrer não, cada um tem a sua hora”, conta sem deixar de rir da história.

Pai e avô

Quando casaram, Ferretti falava em ter quatro filhos. Mas, por motivos alheios às suas vontades, pararam mesmo em André, único filho do casal. “Era um pai atencioso, desde que não tivesse que trocar fraldas. Eu trabalhava à noite muitas vezes porque a escola de Administração funcionava nesse turno. E aí Ferretti que ficava em casa com ele. Mas André não podia contar com ele para brincadeiras como empinar papagaio, bola de gude. O que ele fazia era contar histórias, andar pelas ruas, contemplar a cidade”, narra Mundicarmo.

O Ferretti avô seguia mais ou menos o mesmo modelo de pai. Era comum as duas netas, Bruna e Camila, rirem dele por não saber de algumas coisas, não se interessar por outras. Mundicarmo conta: “Divertiam-se com a falta de experiência dele em algumas coisas. Elas o corrigiam. Nos últimos anos, com elas já maiores, Ferretti queria todo ano fazer uma viagem com a família inteira, para ter um convívio mais próximo. E fomos várias vezes ao México. Ainda vou organizar um álbum com essas viagens”.

Um giro pelo universo acadêmico

No ano de 1969, tanto a UEMA quanto a UFMA estavam se constituindo e chamando muitas pessoas para a docência. E foi assim que, em 1970, Ferretti e Mundicarmo retornaram ao Maranhão,já que, depois de casados, passaram ainda uma temporada morando e trabalhando no Rio de Janeiro. Por já ter tido contato com a  antropologia, quando estudante de História e Museologia, Ferretti passou a lecionar a disciplina na UFMA. Em pouco tempo, sentiu a necessidade de aprofundar seus conhecimentos, o que o levou aos mestrado e doutorado na área. E tal foi o seu envolvimento, que se tornou notório o seu papel na implantação dos cursos de graduação e pós-graduação de Ciências Sociais.

A professora Beta é enfática quando se refere à contribuição de Ferretti. “Ele instituiu tudo das Ciências Sociais aqui no Maranhão. Juntos, nós criamos o curso de graduação, o mestrado, o doutorado. Ele sempre participando. E fazendo isso de uma maneira completa: entregando-se, com aquela ansiedade com os prazos, com medo da gente não conseguir terminar o projeto a tempo, animando todo mundo, sempre numa preocupação muito grande da gente conseguir ter êxito nas coisas. Eu nunca tive no Departamento um colega com a energia de trabalho de Ferretti, aquele que topava tudo, que não via dia nem hora e que colocava sempre à frente o fim do nosso trabalho, que é formar, capacitar o aluno”. Para ilustrar ainda melhor o envolvimento de Ferretti, ela conta que, quando da criação do Programa de Pós-Graduação não havia nenhuma estrutura na UFMA. “Foi tudo feito na minha casa, no meu computador. A princípio, teve uma comissão grande para fazer isso, mas quem estava diariamente em minha casa, ficando às vezes até duas horas da manhã, quando eu o expulsava, alimentando os programas com os dados dos colegas, era ele. Para Ferretti, isso era uma prioridade”.

A entrega de Ferretti também é destacada pela professora e colega de departamento, Arleth Borges. “Ele foi fundamental na criação e consolidação do curso, bem como na forma de entusiasmar os alunos. Ele era sempre assim. Procurava envolver os alunos nos trabalhos, sobretudo na área dele. Estava sempre com livros novos. E ele gostava de mostrar e eu via nesse mostrar um jeito de chamar a atenção dos alunos, de dar indicativo sobre o debate, sobre a agenda de questões que estavam sendo discutidas nas Ciências Sociais. Foi muito empenhado sempre dentro desse esforço institucional, de estabelecer interlocuções com outros centros sociais, com outras instituições de outras cidades. E ter essa interlocução com os pares é indispensável para o processo de consolidação de um curso, de uma profissão”.

Arleth também faz questão de falar acerca do seu empenho na criação do Programa de Pós-Graduação, enfatizando-a como um salto muito importante e ousado para a época e para a realidade da UFMA e da pós-graduação do Brasil que naquele momento era muito centralizada no eixo centro-sul. “Quase todos nós tivemos que sair para fazer mestrado e doutorado fora. E hoje nós temos na área de Ciência Sociais um programa de mestrado e doutorado. Para isso, ele certamente precisou fazer muitos enfrentamentos”.

Depois do Programa criado, ele se debruçou em outro investimento: a criação da revista Pós-Ciências Sociais. “Ela existe graças a Ferretti. Foi um trabalho incansável. Ninguém se dedicou à criação da revista como ele. Foi algo impressionante. Ele carregou quase tudo sozinho. Depois, quando esteve doente – passou quase um ano distante -, a edição ficou com outro colega. Mas ele continuou no seu Conselho Editorial, até a sua partida”, diz Beta.

E mesmo diante de tamanho destaque acadêmico, procurava manter a humildade. E, mais uma vez, o relato que clarifica isso é o de Beta. “Um aluno de mestrado não conseguiu concluir a tempo e foi jubilado. Por sugestão de alguns professores – já que se tratava de um bom aluno – fez nova seleção, entrou novamente no programa e pleiteou outro orientador. Colocaram Ferretti. Só faltava a dissertação. Um belo dia, Ferretti me disse: ‘O tempo está passando, ele não está produzindo direito, vai completar esse ano dele, e ele não termina, e eu não quero mais, não. Vou passar para ti’. Quando cheguei à tarde ao Programa, o coordenador me comunicou da desistência oficial de Ferretti e me repassou o aluno. Como ele se comprometeu a trabalhar direito, topei o desafio. E o aluno concluiu. Chamei Ferretti para banca. E no dia da defesa do aluno, a primeira coisa que ele disse foi: ‘Eu queria começar parabenizando você e especialmente a Beta, porque ela conseguiu fazer o que eu não consegui’. Uma das coisas mais bonitas e raras na academia é a humildade e ele tinha essa qualidade”.

E com todo o seu currículo, não houve qualquer estranhamento quando foi agraciado com o Diploma de Professor Emérito, o primeiro concedido pela UFMA. Esse título é dado a professores já aposentados, que atingiram alto grau de projeção no exercício de sua atividade acadêmica. “Na época, a condição de titular não era como hoje, um passo acessível. Por algumas razões, Ferretti não alcançou esse lugar de titular. Mas quando já ia sair pela compulsória, surgiu a ideia de indicá-lo a Professor Emérito. Mais que justo reconhecimento. E foi muito bom que tenha saído de seu próprio Departamento, dos seus pares do convívio, do cotidiano imediato, pessoas autorizadas a dar esse testemunho de dedicação, de amor, de engajamento”, pontua Arleth.

Sempre às voltas com as pesquisas

Outra dimensão que salta aos olhos é a contribuição de Ferretti como pesquisador de religiões afro-brasileiras e cultura popular, em especial no que se refere ao tambor de mina e ao tambor de crioula, com inúmeros livros publicados, tais como: Querebentã de Zomadonu: Etnografia da Casa das Minas; Repensando o sincretismo; Missa, Culto e Tambor: Os Espaços das religiões no Brasil, entre outros.

Quando se leva em consideração canais mais tradicionais de participação política, ele não era muito presente. Não era encontrado comumente no ativismo sindical, nem nas lutas partidárias. Por vezes isso pode ocasionar uma impressão de despolitização, que após um olhar mais atento, vai se revelar falsa. “Não sei se ele tinha convicções políticas, ou se tinha clareza da grandiosidade do sentido político forte do que ele estava fazendo, que não tinha nada a ver com esses canais tradicionais, mas era de extrema importância, porque a agenda de interesse de pesquisa dele era com religiosidade dos negros, dos pobres, com a cultura desses seguimentos que são sempre muito vitimados de preconceitos de todo tipo. E ele colocar o seu trabalho, o seu prestígio a sua reputação e a própria instituição universitárias a serviço de identificar, valorizar, conhecer, difundir essas práticas tão discriminadas, isso tem um valor político inestimável”, esclarece Arleth.

Ressalta-se que o primeiro contato com as religiões afro-brasileiras se deu ainda quando estudava a cadeira de Antropologia na faculdade, sendo a relação estreitada quando estava na pós-graduação, na Bélgica, por meio do livro “As religiões africanas no Brasil”, de Roger Bastide, e finalmente, fortalecida com as suas pesquisas na área.

Ao contrário do que algumas pessoas pensam, Ferretti não era praticante de nenhuma religião. Costumava dizer que “respeitava muito todas elas, tendo um interesse maior pelas de origem de matriz africana, mas que de fato, não era praticante de nenhuma delas”. Costumava pontuar também o grande preconceito contra essas religiões, mas reconhecia um avanço em relação à tolerância a elas, embora pequeno. Com certeza, ele foi uma das pessoas que mais contribuíram para que isso acontecesse. “O que mais marca esse amigo é justamente o desenvolvimento que ele possibilitou à Antropologia, a maneira como ele tratou essa matéria, tendo que conviver com pessoas de fé. Ele era uma pessoa de fé, mas era muito didático, com um referencial teórico e não perdia a visão da ciência. Um guerreiro, um transformador, um batalhador forte como ferro. Com certeza ele é o nosso ancestral agora. Um dos nossos”, diz Mãe Venina Barboza, Yalorixa/ Candomblé.

Engajamento no Museu Afro Digital, no Grupo GPMINA e na Comissão Maranhense de Folclore

Ferretti era envolvido também com o Museu Afro Digital, da UFMA, que possibilita o acesso ao conhecimento e transforma o passeio virtual em uma navegação pela cultura afro-brasileira por meio da internet, trabalhando religião, cultura popular, quilombos, exposições, entre outros. Outro engajamento que estava em sua lista prioritária era o Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular – GPMINA, que em 2017 completou 25 anos. Há certo tempo, o grupo abriga pessoas de religiões diversas, mas sempre tendo como foco principal a cultura brasileira e a religião afro. E, claro, não se pode deixar de registrar a sua participação por mais de quatro décadas na Comissão Maranhense de Folclore, período em que por várias vezes exerceu a Presidência. Coube a ele também papel fundamental para o seu reavivamento e reativação. O seu marcante engajamento se deu até os últimos meses de vida, ocasião em que estava no papel de 1º tesoureiro.

Homenagens e premiações

Além da certificação de Professor Emérito da UFMA, já citado anteriormente, foram comuns os prêmios e homenagens concedidos ao professor Ferretti ao longo de sua vida, entre eles: Prêmio ABHR, Associação Brasileira de História das Religiões; Medalha Brasileira Folclorista Emérito-Comissão Nacional de Folclore; Prêmio Orientação Mestrado 2014 – FAPEMA; Prêmio Mérito Científico Professora Maria Ozanira da Silva e Silva – UFMA; Medalha Mário de Andrade – IPHAN (pelo trabalho que ajudou São Luís a se tornar Patrimônio Cultural da Humanidade); Título de Cidadão de São Luís, Câmara Municipal de São Luís, Menção Honrosa como Precursor das Ciências Humanas e Sociais no Estado do Maranhão, UEMA, entre outros.

Mas isso não se encerrou com ele em vida. A solenidade de sétimo dia de sua partida, por exemplo, foi marcada pela grande quantidade de pessoas que lá passaram e pela diversidade religiosa. “Eu nunca vi uma solenidade tão bonita, tão emocionante. Foi tocante, foi linda. Contou com as presenças e depoimentos de alunos, de professores, pai de santo e mãe de santo, de espírita, pastor, de padre, de familiares, de colegas de departamento, de amigos, de caixeiras do divino, de pessoas ligadas ao bumba boi. Não teve dúvida para ninguém que ele estava com a gente. O auditório central da UFMA cheio, das 18h às 22h. Choro, algumas vezes e só de emoção. Uma energia enorme. Saí de lá em estado de graça. Não fizemos missa, porque uma pessoa que desenvolveu no Maranhão o respeito pela diversidade religiosa, que valorizou as religiões afro-brasileiras não poderia ter uma cerimônia de uma religião só. Mundicarmo ajudou muito na escolha de tudo como deveria ser e o pessoal da Comissão Maranhense de Folclore também”, descreveu Beta.

E as homenagens vêm de todos os lados. A professora Beta afirma que está analisando uma tese e ela é dedicada a dois professores, entre eles Ferretti. “A autora, que foi sua aluna na graduação, diz: ‘Ao professor Ferretti, que me iniciou na etnografia’ e coloca ainda que o entusiasmo dele marcou a trajetória dela no trabalho de campo como antropóloga’. E olha que ele nem era o orientador dela. Ele levantava muito o astral das pessoas”, conclui.

O professor Ferretti também será o homenageado do Prêmio FAPEMA deste ano. Instituição que ele também ajudou a pensar e a organizar. “Eu acho muito importante, um reconhecimento ao trabalho dele. Tive algumas surpresas agradáveis. Ele está recebendo muitas homenagens: em São Luís, São Paulo, Florianópolis. Como disse a minha neta: ‘Eu não sabia que o vô era tão importante’. Ainda estou acabando de escrever um texto sobre ele, mas ainda é muito difícil para mim. Nós tivemos uma experiência que juntou as duas coisas: o afetivo e o profissional”.

Por essa fantástica e criativa trajetória e por todo o seu legado, só nos resta dizer: “Nossos sinceros agradecimentos por tudo, professor Sergio Ferretti”.