A guerra ideológica da internet
No ano passado, uma série de sofisticados ataques à internet provenientes da China afetou profundamente o sistema computacional de cerca de duas dúzias de empresas americanas, entre elas a Northrop Grumman, a Dow Chemical e a Yahoo. Uma delas, entretanto, contra-atacou. Após descobrir que os ataques objetivavam não apenas seu núcleo de propriedade intelectual, mas também contas de e-mail de ativistas pró-direitos humanos chineses, o Google anunciou que pararia de censurar os resultados de buscas na Google.cn, sua máquina de busca chinesa. Essa decisão levou à ameaça de fechamento das operações do Google na China pelas autoridades chinesas. O site acabou optando por sair do país.
As acusações e retaliações parecem reminiscências dos episódios da guerra fria, e, de fato, esse confronto pode ser o primeiro grande enfrentamento de dois superpoderes emergentes do século 21 – Google e China. Mais do que uma batalha sobre território ou cota de mercado, trata-se de um conflito ideológico que contrapõe uma internet livre e aberta – que dá poderes aos indivíduos – em detrimento de uma internet excessivamente controlada pela estrutura de poder existente. “Estamos tratando aqui da defesa da essência da internet”, observa Jeff Jarvis, diretor do programa de jornalismo interativo da City University of New York e autor de “O que o Google faria?”, (Editora Manole).
Mais do que qualquer organização, o Google, segundo Jarvis, tem tanto os meios quanto o incentivo para assegurar que a internet permaneça aberta. É também uma das poucas organizações com uma presença on-line suficientemente ampla para definir regras de operação padronizadas para a internet, explica Rebecca MacKinnon, pesquisadora do Centro de Política para Tecnologias da Informação da Princeton University. Segundo ela, a Google é “quem dá o primeiro passo em vários setores diferentes”. “Ela pode determinar as normas para a liberdade on-line”.
Para aqueles que são contra a censura, o Google é também uma das poucas organizações com poder computacional bruto suficiente para ajudar na luta contra regimes autoritários. “Minha esperança (e expectativa) é de que os engenheiros do Google, que eram um tanto indiferentes quanto a implementar mandatos de censura na Google.cn, possam ser completamente motivados a apresentar soluções para que o Google possa ser visualizado apesar de interrupções na rede entre o site e o usuário”, declara Jonathan Zittrain, cofundador do Centro Berkman para Internet e Sociedade, da Harvard University.
O Google poderia lutar contra os esforços de censura da China ajudando aqueles que lá estão a abrir uma brecha na chamada Grande Firewall (em alusão à Grande Muralha). Assim como edifícios no mundo real, cada local na internet tem um endereço associado a ele – chamado de Internet Protocol, ou IP. Além da filtragem de certas palavras chave, os administradores da Grande Firewall mantêm uma imensa lista de endereços IP bloqueados. Ferramentas de evasão redirecionam o usuário para um endereço não bloqueado, então canalizam toda a informação externa através desse endereço de IP “proxy”. Ainda assim, esse atalho pode se perder a qualquer momento. “Um desses endereços de IP pode durar para sempre, ou por alguns meses, ou por alguns minutos” antes que as autoridades o encontrem e o bloqueiem, observa Hal Roberts, especialista em ferramentas de evasão do Centro Berkman.
Qualquer esforço de evasão exigirá, portanto, um número enorme de endereços para circulação, juntamente com uma imensa quantidade de largura de banda para suportar todo esse tunelamento. “Se conseguíssemos por um passe de mágica convencer todo o povo chinês a usar esses serviços”, diz Roberts, “então alguém teria que pagar por toda a banda de saída da China”. Isso poderia sobrecarregar, mas não muito, os recursos do Google.
No entanto, existem boas razões para o Google não iniciar esse tipo de guerra de proxy. Promover uma internet livre e aberta é uma coisa, desrespeitar expressamente as leis de uma nação soberana é outra. Além disso, as mesmas ferramentas de evasão também servem como ferramentas anonimizadoras – qualquer um pode utilizar servidores proxy para ocultar sua verdadeira identidade. “O que os torna úteis para todo tipo de atividades nocivas”, acrescenta Roberts. “Poderiam ser utilizados para invadir os servidores do Google ou para atacar seus serviços utilizando a fraude do clique ou spam. Portanto, existe uma grande dúvida se do ponto de vista do Google seria interessante esse tipo de ação”.
Não importa o curso que o confronto tome nos próximos meses ou anos, pois já chamou a atenção para a batalha pelo controle de quão irrestrita a internet deve ser. No momento os usuários dependem de empresas como o Google para defender a internet de forças – governamentais ou não – que possam exercer um controle hierarquizado mais restrito sobre ela. Isso, no entanto, pode não ser suficiente. Segundo MacKinnon, “o Google – juntamente com uma série de outras empresas que trabalham com a internet e empresas de comunicações – criaram esse suporte do qual dependemos”. Entretanto, não existe um conjunto de regras, uma Declaração de Direitos da Internet, que especifique os direitos dos cidadãos on-line. “Essas companhias dizem ‘somos gente boa, confiem em nós’”, observa MacKinnon. “Assim como em uma ditadura benevolente, que funciona realmente bem quando o líder do momento é um bom sujeito. Mas quando ele morre e seu filho perverso assume, todos são reprimidos”.