Estudo discute a constituição de travestis em meio à heteronormatividade

Por Ivanildo Santos 1 de agosto de 2017

lgbt-heteronormatividadeNa sociedade brasileira contemporânea existem inúmeros questionamentos sobre o padrão heteronormativo, tais como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, com todas as peculiaridades que o contexto sociocultural e histórico compõe.

Diante disso, a pesquisadora Juciana Sampaio, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), desenvolveu um estudo com o intuito de entender o que possibilita esses questionamentos, quem questiona e por quê, bem como entender a natureza da insurgência dos sujeitos à heteronorma e se isso representa, de fato, uma desestabilização desse padrão social.

Segundo Juciana Sampaio, o estudo teve como foco a discussão sobre a constituição de travestis em meio à heteronormatividade, analisando processos sociais de elaboração de conhecimentos, categorizações e práticas direcionadas a encerrar a experiência desses sujeitos em suas performances de gênero, com centralidade na vivência de Janaína Dutra (1960-2004), ativista cearense considerada a “primeira travesti advogada no Brasil”.

“Guiada pelos referenciais teóricos de gênero e feministas foi reconstruída a experiência de vida dessa travesti em meio a uma analítica da normalização, que interroga como se dá o estabelecimento de fronteiras da diferença. Entendendo que o padrão heteronormativo regula a vida dos sujeitos e que a ordem social é uma ordem sexual, chamo-se a atenção para a constituição do gênero na organização das relações sociais e para como esses eixos de diferenciação se relacionam com outros marcadores sociais, como região, etnia, nacionalidade, religião, classe social. Com essa investigação pretendeu-se mostrar, entre outros elementos, que os sujeitos são construções instáveis e indeterminadas, longe de serem fixas e autoevidentes”, explica Juciana, também professora de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA).

De acordo com a pesquisadora, essas provocações surgiram da reflexão acerca da experiência de travestis no contexto local, a princípio, mas que se insere e se expande para cenários mais gerais, a nível nacional e global. A pesquisa começou em 2011 e foi finalizada em 2015.  

“O trabalho configura-se em uma investigação sociológica cujo objeto resultou de uma problematização acerca de normas de gênero reinantes em nossa sociedade, na qual predomina o regime da heteronormatividade. Janaína Dutra é o centro da discussão, na medida em que esclarece a operacionalização dessas normas em sua vivência, seja para reificá-las e/ou para desestabilizá-las, inserida em configurações histórico-sociais específicas”, conta Juciana, coordenadora do Grupo de Pesquisa Múltiplos Saberes e Produção das Diferenças na Contemporaneidade.

A pesquisadora afirma que foi possível construir uma dada versão sobre a experiência de vida de Janaína e perceber como ela foi adentrando no sistema excludente da heteronormatividade, se inserindo em redes, se apoderando de condições sociais para legitimar e fortalecer sua atuação, a partir de um lugar considerado pioneiro e exclusivo.

“A análise da experiência de vida de Janaína, em meandros heteronormativos, possibilitou entendimentos sobre o funcionamento de mecanismos sociais de intervenção e direcionamento que a controlaram por meio de imposições e normatizações da sua existência, exercendo influência em sua socialização e construção da subjetividade”, diz Juciana Sampaio.

Conforme relatado na pesquisa, Janaína negociava com as normas presentes nessas instâncias, criando estratégias de enfrentamento que também abarcavam conformidade, seja na família, no meio educacional, profissional, nos relacionamentos afetivos, no ativismo, com o Estado, inserida em dinâmicas sócio históricas, em um constante jogo de “(des)encaixe” moral, driblando a culpa, a vergonha, o medo, o estigma e a abjeção.

“Por ter sido um trabalho sobre as normas sociais da heteronormatividade, o estudo contribui para a problematização dos processos sociais de exclusão a que estamos submetidos em sociedade. De certa maneira, a pesquisa e seus resultados trazem o benefício de ajudar no entendimento do funcionamento social que cria diferenciações e marginalizações baseadas em padrões construídos socialmente e eleitos como adequados a serem seguidos. O combate aos preconceitos e violências, sejam elas físicas ou simbólicas, são de extrema importância, sendo o gênero e a sexualidade marcadores sociais da diferença que contribuem para as classificações dos sujeitos”, ressaltou Juciana Sampaio.