O desafio da febre amarela no Brasil
Em 2008, o Brasil registrou 46 casos de febre amarela, com provável contaminação ocorrida nas áreas silvestres de Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná, Pará e Distrito Federal. Entretanto, a doença tem avançado para a região Sul do país, onde, até abril deste ano, foram feitas mais de 30 notificações de casos suspeitos de febre amarela silvestre. O pesquisador Ricardo Lourenço, chefe do laboratório de Transmissores de Hematozoários do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), esclarece dúvidas sobre a dispersão da doença, presente na América do Sul e na África. Entre outros aspectos, ele informa que as intervenções no ambiente silvestre são centrais nos ciclos de dispersão do vírus e defende que os primatas não são os principais responsáveis pela doença.
A febre amarela é uma doença infecciosa aguda, transmitida pela picada dos mosquitos transmissores infectados, que causa hemorragia, dores no corpo e icterícia (pele e olhos ficam amarelados). Foi controlada no início do século 20, com a produção de uma vacina eficaz a partir 1937, produzida pela Fiocruz desde então. Esta doença pode apresentar dois ciclos epidemiológicos – o silvestre e o urbano. Ambos envolvem mosquitos na transmissão do vírus: na forma silvestre, os transmissores são primariamente mosquitos do gênero Haemagogus, ao passo que, na forma urbana, o vetor é o mesmo da dengue, o Aedes aegypti.
A forma silvestre ainda atinge pessoas não vacinadas que circulam em florestas ou em regiões consideradas de risco: os estados de Acre, Amazonas, Pará, Roraima, Amapá, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Goiás, Distrito Federal e Maranhão, além de áreas de transição, que incluem partes ocidentais dos estados de Piauí, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No Brasil, a transmissão urbana da doença está controlada há mais de seis décadas: o último registro foi no Acre, em 1942.
Epidemias não são constantes
O pesquisador informa que todos os anos ocorrem casos de febre amarela no país, mas que as epidemias acontecem em intervalos de seis ou nove anos. “A epidemia parte de um ponto de dispersão, geralmente na Amazônia ou em matas de galeria (ao longo de rios) do Centro-Oeste. A partir deste ponto, o vírus começa a se espalhar, promovendo uma expansão da área endêmica e causando epidemias em áreas com baixa cobertura vacinal”, o entomologista indica.
De acordo com Lourenço, até o final dos anos 1990, a área endêmica abrangia toda a Amazônia e a região Centro-Oeste, com uma área de transição que atingia estreita parte oeste dos estados de Bahia, Minas Ferais, São Paulo e Paraná. O restante do país era considerada área indene – livre da doença. No início do século 21, a epidemia ocorrida no oeste de Minas Gerais alargou a faixa de transição para o leste. Em 2002, uma epidemia ocorrida no Rio Grande do Sul expandiu esta faixa para o oeste de todos os estados da região Sul.
Para o especialista, é praticamente impossível acabar com a forma silvestre da doença, pois ela se mantém na floresta entre os mosquitos e mamíferos silvestres, e os mosquitos, uma vez infectados, ficam infectantes pelo resto da vida e também podem passar a infecção da mãe para o mosquito filhote (transmissão vertical da fêmea para sua prole). Os ovos destes vetores são resistentes à dissecação, ou seja: a população de ovos fica latente em ocos de árvore, resistindo de um ano para o outro, e pode eclodir depois do contato com as águas das chuvas. Os mosquitos Haemagogus transmitem a doença picando mamíferos, inclusive o homem. A transmissão deste vírus se dá pela picada de mosquitos transmissores infectados e não ocorre de pessoa para pessoa.
Intervenção no ambiente atua nos ciclos do vírus
A intervenção humana em áreas silvestres está intimamente relacionada com os ciclos de dispersão do vírus. Com o desequilíbrio causado pela ação do homem na floresta, os insetos descem das copas das árvores, seu habitat natural, e começam a picar animais no chão. Na copa, os macacos cebídeos (guaribas, bugios, ateles e pregos) são os alvos preferenciais.
Estas espécies desenvolvem a síndrome de febre amarela de forma semelhante ao homem. Entretanto, os macacos infectados durante epizootias anteriores (epidemia em animais) têm resistência ao vírus e, desta forma, não são infectados novamente. Os animais nascidos depois, e que, portanto, não tiveram contato anterior com o vírus, podem adoecer e até morrer, segundo o pesquisador. O vírus da febre amarela circula no sangue dos macacos infectados (viremia) por cerca três a cinco dias. Os mosquitos Haemagogus que picarem estes animais durante o período de viremia poderão contrair a infecção e, após um período de incubação de pouco mais de 10 dias, transmitir o vírus para outros animais e para pessoas que circulem no ambiente silvestre ou próximo a eles.
O pesquisador frisa que, diferentemente do que muitos acreditam, os mosquitos são verdadeiros reservatórios do vírus, ao passo que macacos são fontes de infecção para mosquitos apenas durante alguns dias. “Depois de picados por um vetor infectado com o vírus, ou estes mamíferos morrem ou se tornam imunes a novas infecções. Desta forma, os macacos, quando infectados, podem transmitir o vírus para mosquitos que os picarem por apenas três a cinco dias, período da viremia. São os mosquitos que mantêm o vírus no ambiente silvestre, até mesmo na ausência de macacos infectados”, argumenta.
Vacinação é principal arma de prevenção
A febre amarela não tem tratamento específico, mas conta com uma vacina eficaz, com validade de dez anos. “A melhor medida é manter a vigilância sobre a dispersão do vírus e efetuar a vacinação dos moradores de áreas endêmicas e de viajantes que se dirigem a estas áreas”, explica Lourenço. A vacinação é gratuita e direcionada para residentes das áreas de risco e viajantes que se dirigem para estes locais. Ela deve ser aplicada, pelo menos, dez dias antes da viagem. A imunização pode ser feita a partir dos nove meses de idade e não é indicada para gestantes, imunodeprimidos (pessoas com o sistema imunológico debilitado) e pessoas alérgicas a gema de ovo.
A Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde implementou, em 2001, o Plano de Intensificação das Ações de Prevenção e Controle da Febre Amarela, para reduzir a incidência da forma silvestre. Segundo o órgão, entre 2007 e 2008, foram distribuídas mais de 18,8 milhões de doses de vacina contra a doença em todo o país.